Marcus Caetano

Poemas

Parmênides

Minha amiga disse para jamais me insinuar na vida pública, tinha medo de que as bruxas e os monstros me corroessem os ossos. Não concluí o ensino superior, fiz somente a educação dos ínferos: Ela indagava: como você pode ser tão néscio e gênio ao mesmo tempo? Sou? Retruquei. É que você tem ouvidos e não ouve ninguém, fala sempre na hora errada, mas saem coisas dignas de serem ouvidas. Sou? Não escutei. Andamos, eu e ela, na mesma rua pública. Acredito que para ela eu fosse uma boa companhia, ainda que por vezes também não o fosse. Ela queria que eu ficasse pra sombra, a vida do sol dá pra cegar sentidos.

Prazer

Me sussurraram que se fosse direto naquela rua eu encontraria. O que vi no meio do caminho foi uma baleia morta: ossos anchos e uma curiosidade maior ainda. Algum turista se deleitava com a cena: história viva, arqueologia animal. Cliques. Cliques. Salva-vidas não fazem jus ao nome: ouvi dizer que alguns morrem, o que contraria o salvar, mas não a vida. Sentei-me nas areias, não precisava encontrar naquele dia. A baleia estava morta há anos. Passei por ela desde minha infância, jurava que ontem ainda havia carne.

Alexandre

Nos jornais o tempo todo se bombardeiam notícias de guerra: sou incapaz de acompanhar a todas. O que me deixa encucado é: ainda noticiam isso, todo dia uma variação da mesma morte. O que não entendo são as causas, se veem a chuva cair do céu sabem que é do céu. Ainda assim, dizem, é preciso décadas de estudo para entender por que uma bala faz seu percurso. É que querem sempre proteger seus limites, pois em cada instante há um outro fazendo fronteira.

Mímica

Mais vale um pássaro na mão do que dois voando - Só diz isso quem não sabe voar.

Pedra filosofal

É espantoso como todo dia se noticiam mortes, o discurso tem um poder estranho: ao trazer para o conhecimento o fim de uma existência, faz com que ela exista mais do que em vida.

Mentira

Quem se importa com a chuva que cai desconhecida? É só água, gravidade, estados e uma dose de atmosfera. A chuva que cai em cima da cabeça é a que existe. A vida tem o péssimo hábito de ter a extensão da vista. Tudo além disso é literatura. E quantos até hoje não brigam pelos delírios de Bentinho?

Veias

Ir da igreja para o escritório. Esmiuçar a anatomia abstrata de um útero de plástico que repousa entre uma conversa no ônibus e um sermão. De um lado, dorme com dentes serrados a culpa, do outro, mais serena, a falta de sentido. Dizem que depois de tudo foi buscar um terreiro, mas estava tão ausente de perdido, que comeu foi hóstia enquanto digitava centenas de planilhas. Tinha planos para todas as noites, mas revezava entre dormir e esquecer de dormir. No outro dia pintou um útero, mas sem querer o enviou por e-mail. Depois disso só confessa na internet.

Heráclito

Um cachorro dorme suspenso entre o sim e o não. Os vendedores de notícias gozam o apocalipse, preparam um fastidioso banquete toda noite: o instante seguinte, e também o seguinte, vendem como água ao ávido sequioso. Todos correm desesperados para não se sabe onde, é preciso chegar lá, dizem - E no meio do caminho atropelam cachorros. É preciso chegar lá, gritam - A noite nunca chega quando se dorme pensando. É preciso chegar lá, morrem - O corpo flutua vivo, enquanto os olhos seguem correnteza abaixo. Amanhã a gente pode fazer tudo de novo, e no dia seguinte, e também o seguinte.

Entre

O silêncio é um grito educado. Responde a tudo com ausência. Fica, mesmo quando não é chamado.

Sorriso

A morte não nos modifica. Sofremos o luto e depois não o sofremos mais. A vida que é o arrebatamento cheio de floreios, o próprio inesperado manifesto, a fulgaz luz trépida e abrupta - não há medo da morte, senão da vida, frágil, finita e interrupta.